quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Notas de protesto

A música, nas suas mais variadas vertentes, tem poder de sedução e capacidade de penetração inigualáveis. Através dela é possível expressar sentimentos de tristeza, amor, alegria, esperança, revolta. Por meio de letras e batidas, é possível fazer da música um veículo poderoso para a disseminação de ideias e ideologias.

Se na chamada Época de Ouro, dos anos 30 e 40, as canções abordavam a ingratidão e a malandragem, a partir dos anos 50, com o advento da bossa nova, tais contextos são renegados e o foco é o indivíduo da classe média, “aquele que podia possuir um barquinho” (MELLO, 2003).

A partir do final da década de 1950 surge no Brasil a MPB, que consolida-se durante as décadas de 60 e 80. É bom que se frise que há diferença entre a música popular brasileira e aquilo que é designado pela sigla MPB. Antes da década de 60, toda e qualquer música produzida e/ou consumida pelas classes populares no País se inserem na primeira designação. É no momento de surgimento da bossa nova que a sigla MPB aparece no mercado musical brasileiro.

No ano de 1962, a esquerda nacionalista, apesar de apreciar a musicalidade da bossa nova, vê no estilo uma fiel cópia do jazz americano. Dar-se-ia, então, uma cisão: interpretes da bossa nova transferem-se para novos espaços, como teatros, praças públicas e auditórios, para produzir e divulgar músicas que abordassem o homem brasileiro comum, retratando a situação do povo brasileiro naquele momento. E qual era essa realidade? Ela estava visceralmente ligada aos acontecimentos políticos que agitaram o Brasil nesses anos. Se a euforia durante o governo Juscelino, decorrente do desenvolvimento e das conquistas brasileiras em diversos setores teve seu papel na bossa nova, os tormentosos anos 60 mostraram um panorama bem diferente, a antítese daquela fase eufórica.

Em março de 1964 instaura-se no País um movimento militar com o propósito declarado de livrar o Brasil do comunismo, que estaria supostamente sendo implementado pelas atitudes e reformas efetuadas até então pelo presidente João Goulart. O período de 19 a 31 de março fora marcado por marchas, prisões, demissões de ministros, mobilizações, movimentos de tropas e, finalmente, o golpe. Para atingir seus desígnios, os novos “donos do poder” promulgaram decretos conhecidos como Atos Institucionais, os “AI”, que tinham por objetivo, entre outros, reduzir o papel do Congresso. O AI-1 prepara o terreno para os inquéritos policial-militares, possibilitando perseguições, prisões e torturas dos inimigos do novo regime, entre os quais os estudantes, que tiveram a sede da UNE incendiada; juízes e parlamentares, que foram cassados; e participantes das Ligas Camponesas. O AI-1 permitiu a eleição indireta do General Castelo Branco, que presidiu o País até 31 de janeiro de 1966.
Seus poderes foram ampliados pelo AI-2, decretado em 1965, que extinguiu os partidos políticos e forçou uma situação de bipartidarismo, composto por Arena (situação) e MDB (oposição) (GASPARI, 2002).

Do AI-1 ao AI-5, em 1968 – marco sombrio na história política brasileira –, observou-se no País o arrochamento da liberdade. Alguns cidadãos passaram a ser proibidos de exercer suas profissões; e a garantia do habeas corpus estava suspensa. As ações que se seguiram, adotando a tortura e acobertando sumiços, sufocaram guerrilhas, assaltos, sequestros e atos terroristas, censuraram a imprensa, rádio e TV, esmagaram as formas de protesto políticos de estudantes universitários e secundaristas nas ruas, derrubaram manifestações artísticas com prisões e exílio.

Nesse contexto, surgem os festivais da MPB. Jovens cantores que tinham olhar sociopolítico crítico viram nesses eventos uma oportunidade de ampliar seus espaços.

Assim como a grande maioria das manifestações artísticas desse período, os festivais estavam associados a uma consciência política que tinha como base o desejo de transformação e crítica à ordem estabelecida. “O teatro, a música e o cinema tornaram-se artes nas quais residia preferencialmente o debate cultural de esquerda”. (KORNIS, 2010)

A esfera da cultura era vista como suspeição a priori, meio onde os “comunistas”, os “subversivos” estariam particularmente infiltrados. Dentro dessa esfera, o campo musical destacava-se como principal alvo da vigilância política.

A explosão dos festivais da canção, sobretudo os festivais da TV Record de São Paulo, a partir de 1960, coincidiu com o crescimento da agitação contrária ao regime militar. A "setembrada" estudantil daquele ano, quando os estudantes saíram às ruas para protestar contra o regime, foi seguida pela "outubrada" musical, culminando no frenesi provocado pelas apresentações de “A banda” e “Disparada”, esta última consolidando a vocação de sucesso comercial da canção engajada brasileira. No ano seguinte, os serviços de vigilância e repressão apontavam, em Informação produzida pelo II Exército de São Paulo, a TV Record e a Rádio Panamericana (atual Jovem Pan) como "foco" de "ação psicológica sobre o público, desenvolvida por um grupo de cantores e compositores de orientação filo-comunista, atualmente em franca atividade nos meios culturais" (NAPOLITANO, 2004).

Na década de 1960, a ideologia dos jovens estudantes no mundo tinha, numa ponta, a teoria marxista e, na outra, a ideia romantizada – e, de certo modo, contraditória – segundo a qual o sistema só cederia pela violência. No Brasil, essa violência seria desferida contra o inimigo mais ostensivo, o regime militar, já que a ditadura era o mais próximo representante desse sistema. Em São Paulo, assim como em outras cidades brasileiras, as ruas transformaram-se em praças de guerra: havia confrontos entre tropas de choque e estudantes, cargas de cavalaria, ocupação das universidades, embates sangrentos, tumultos, mortes, depredações.

As chamadas músicas de protesto tornaram-se trilhas sonoras da resistência, verdadeiros hinos para a geração que lutou contra as repressões dos governos militares. As letras engajadas, as performances e declarações de ícones desse movimento musical, recheadas de incentivos à resistência, influenciavam e entusiasmavam jovens. Algumas das canções mais marcantes foram: “É proibido proibir” (Caetano Veloso); “Canção do amor armado” (Sérgio Ricardo); “Questão de ordem” (Gilberto Gil); “América, América” (Cesar Roldão Vieira); "Pra não dizer que não falei das flores" (Geraldo Vandré); "A Banda" (Chico Buarque).

Mas a produção musical nesse período não representava os mais puros sentimentos e pensamentos dos compositores. A partir da segunda metade da década de 1960, o cerceamento às manifestações culturais que sugerissem mensagens contra a ordem estabelecida se fez forte e duro. Mesmo assim, os artistas não se calaram totalmente. Ao contrário, lançavam suas mensagens de protesto de forma mais sutil, entre metáforas e por entrelinhas. As músicas de resistência continuaram, mesmo com o exílio de boa parte dos artistas engajados politicamente, influenciando as gerações.

No resgate histórico sobre a música de protesto foi possível identificar que os artistas da MPB, nesse período de grande repressão, foram alvos da produção da suspeita. Em documentos de órgãos de repressão, eles são apontados como arautos de uma conspiração revolucionária, quando, na verdade, queriam apenas romper com o silêncio.


Autor: Adriano Magrinelli,aluno do 6º semestre de História,UNG-campus Dutra

Referências Bibliográficas

BERNARDO, Cláudio José. “A MPB como recipiente de protestos contra a ditadura militar: as metáforas carregadas de vozes contra o regime autoritário”. 2007. 104 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Letras

GASPARI, Elio. “A ditadura envergonhada”. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

KORNIS, Mônica Almeida. “A cultura engajada”. Disponível em:

MELLO, Zuza Homem. “A Era dos Festivais – Uma Parábola”. São Paulo: Ed. 34, 2003, p. 51

NAPOLITANO, Marcos. “A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981)”. Rev. Bras. Hist. [online]. 2004, vol.24, n.47, pp. 103-126

Fonte da imagem:http://1.bp.blogspot.com/_CphOzrlWq7k/S94KsAVELCI/AAAAAAAADX8/l1jPVNf6Qvk/s1600/1968-vandre-4_1209657364.jpg

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